sábado, 25 de setembro de 2010

Fraude - a praga do mercado de seguros

O contrato de seguro é, em tese, um contrato de fé entre duas partes que tem como objetivo dar cobertura a um determinado bem que pode ser uma vida ou objeto, contra um infortúnio, visto que qualquer bem possui um valor monetário. De um lado, o segurado se compromete a pagar uma quantia para fazer face àquilo que deseja proteger. De outro lado, o segurador se compromete a repor a perda desse bem, mediante o recebimento daquela quantia.
Como especialistas, cabe a nós, atuários, a missão de estabelecer uma equação de equilíbrio que viabilize essa operação. Para isso, quando desenvolvemos um produto levamos em consideração uma série de variáveis e procedimentos. Em síntese, o processo de construção do preço de um produto comercializado por uma entidade que administra riscos consiste na avaliação da experiência histórica passada, nas características do produto que se pretende oferecer e na capacidade de se prever os riscos futuros.
Tomemos como referência a criação de um produto de seguro-saúde. Considerando as características do produto que se pretende oferecer, algumas questões relevantes são alvo de análise: Qual será o tipo de plano a ser oferecido? Individual ou Coletivo? Quais serão as coberturas oferecidas? Serão consideradas exclusões de determinados procedimentos? Serão previstas carências, existência de fatores moderadores (franquias, co-participação, limites financeiros)? Qual será a forma de viabilização (rede credenciada ou livre escolha, com ou sem reembolso)? Qual o tipo de acomodação que o segurado utilizará? Qual o público-alvo a que se destina, nível de renda e outras particularidades?
Finalizada essa etapa, desenvolvemos o processo de análise da segmentação de risco e combinamos essas variáveis com outras relacionadas à população que se pretende atingir, tais como: idade, sexo, hábito de vida, profissão, histórico de doenças preexistentes, região de utilização, clinicas credenciadas, especialidade, o custo dos prestadores de serviço médicos, entre outros. Para compor o processo de tarifação ou definição de preços, baseamo-nos em experiências passadas, estatísticas de mercado, custo médio de eventos referentes a produtos similares e riscos futuros, tais como: variação de despesas médicas, variação de unidades médicas, epidemias, política de gerenciamento dos riscos e prevenção.
 Com base nisso, procuramos obter a tarifa pura que, acrescida dos custos de administração e comercial, determina o custo final do produto que se deseja oferecer ao mercado. Lembramos que esse custo deve ter alguns atributos fundamentais, quais sejam: deve ser seletivo, acessível ao consumidor, competitivo, incentivador do controle de perdas e, finalmente, garantidor da solvência da empresa.
Servi-me desse preâmbulo para tratar de um fato exógeno que tem causado graves distorções nos preços do seguro, especialmente no Brasil. Referimo-nos à fraude que tem proporcionado prejuízos relevantes às seguradoras, à economia nacional e, em última instância, à sociedade. A fraude não é um problema que atinge apenas o mercado de seguros brasileiro, trata-se de uma praga mundial, razão de preocupações crescentes e constantes nos mercados seguradores e que tem crescido assustadoramente.
 Uma das principais causas da fraude no seguro é a facilidade na sua consecução. As fraudes são cada vez mais sofisticadas. Os fraudadores têm se aproveitado com eficiência dos avanços tecnológicos na área de comunicação e informática para a reprodução de documentos fraudulentos, dificultando em demasia a apuração da veracidade do sinistro.
A fraude significa engano lesivo, mentir, abuso de confiança, ação de má-fé, adulteração, ou seja, é crime e deve ser vista como ato criminoso contra a economia, pois distorce a relação de equilíbrio de que já tratamos, anteriormente, elevando artificialmente a sinistralidade, ou seja, afeta diretamente os preços do seguro. As maiores vítimas dessa ação maléfica são os bons consumidores que acabam por pagar a conta. Ora, o consumidor tem um limite de capacidade para assumir compromissos e, obviamente, ultrapassado esse limite, ele deixa de fazê-lo. Essa situação acaba comprometendo seriamente o desenvolvimento do mercado de seguros.
Especula-se que apenas 30% da frota nacional de veículos esteja segurada. Engana-se quem pensa que isto ocorre por falta de previdência por parte do consumidor. Entendemos que prevalece como principal justificativa para esse quadro o custo proibitivo do seguro que está contaminado com o alto índice de fraudes. O consumidor tem um limite de comprometimento de sua renda. No caso do seguro saúde, apesar de o custo ser igualmente elevado, a questão é amenizada pela participação direta da empresa na repartição do custo com o segurado, assumindo, na grande maioria das vezes, a maior parte do custo.
Esses crimes podem ser cometidos por quadrilhas, criminosos que optaram por fazer da fraude um meio de vida, como também por cidadãos comuns, independentemente da classe social a que pertençam que, por uma falha de caráter, necessidade financeira ou oportunidade tentadora, acabam por cometer o delito. São ocorrências incríveis que a área de Sinistros de uma seguradora manipula, diariamente. 
Como já comentamos, o contrato de seguro é um contrato de fé entre as partes. As seguradoras têm como princípio confiar nas declarações do segurado e no documento por ele assinado e seu corretor.  Do ponto de vista legal, não existem mecanismos que possibilitem à seguradora selecionar seu segurado, alguns contratos de seguro têm de oferecer a garantia a partir da zero hora do dia seguinte ao pagamento da prestação do seguro. Por outro lado, os custos administrativos aumentariam, substancialmente, se as seguradoras tivessem de fazer uma avaliação prévia e criteriosa do segurado. Trata-se de uma questão complexa. Existem fraudes em todos os ramos de seguro; entretanto, a seguradora, na grande maioria das vezes, tem apenas indícios da fraude, e no Brasil a prova indiciária não é aceita pelo Poder Judiciário. Além do que, prevalece a crença de que as seguradoras são empresas ricas e poderosas e tudo podem. Contudo, as pessoas esquecem que a fraude acaba sendo paga pelo bom consumidor, pois está embutida nas estatísticas que servem de base para a determinação do preço do seguro, como já dissemos. Quando, eventualmente, as seguradoras comprovam a fraude, lamentavelmente se limitam a cancelar o seguro e não pagar a indenização e dar o assunto por encerrado, permitindo, assim, que o fraudador aplique novos golpes no mercado, quando se deveria abrir processo criminal. Esse procedimento, decididamente, não contribui para melhorar essa situação. Muitas providências ainda terão de ser tomadas para combater as fraudes no Brasil. É de fundamental importância discutir a fundo o problema, a fim de minimizar as perdas provenientes dessa ação maléfica. O Sr. Lúcio Marques junto com Luis Roberto Castilgione, estudiosos do assunto, defendem a criação do Comitê Brasileiro de Combate à Fraude.
Este parece ser o melhor caminho a ser percorrido que, no futuro, poderá trazer bons resultados. Por mais esforço que se faça, nenhuma seguradora, sozinha, conseguirá obter sucesso com uma ação isolada. Não existe solução de curto prazo. A questão está ligada a uma mudança drástica de postura por parte das empresas seguradoras em relação ao problema. A solução passa por uma ação institucional e, para que isso ocorra, é necessário superar os paradigmas que ainda inviabilizam uma ação conjunta, por parte das empresas de seguro.
 Algumas empresas preferem pagar o seguro, ainda que existam indícios de fraude, pois o custo para provar a fraude pode ser significativamente maior, atingindo a sua imagem no mercado, em face da forte pressão exercida contra as seguradoras para liquidação dos sinistros.
Deve-se buscar, constantemente, formas de ampliar a fiscalização, criar protocolos internos mais eficientes que permitam, dentre outras medidas, uma ação investigativa, criar bancos de dados, e investir fortemente em educação e marketing.
A legislação americana é extremamente rigorosa e possui uma longa tradição de combate contínuo à fraude. A Europa criou um Comitê de Combate às Fraudes que opera em sintonia com as Seguradoras, órgãos de Segurança Pública e Polícia Federal. Nesse sentido, foram estabelecidos inúmeros protocolos de cooperação que dificultam esse tipo de ação. As iniciativas mais recentes na Europa para aperfeiçoar a detecção e a prevenção da fraude estão associadas às iniciativas de nível interno nas empresas, fato muito comum, mas que tem forte apoio no âmbito institucional. Criaram-se unidades especiais no âmbito de empresas para coordenar as atividades antifraude nos diferentes ramos de seguros. Recursos foram aplicados na formação de pessoas e intermediários. Investimentos em pesquisa e educação possibilitaram a elaboração de manuais que tratam dos indicadores de fraude. Cooperação estreita entre as instâncias judiciárias e governamentais são incentivadas e aperfeiçoadas. O desenvolvimento de bases de dados informatizadas, cadastros centralizados, como o Claims and Underwriting Exchange – CUE na Inglaterra, que são administrados de acordo com um código de boas práticas, tem permitido obter resultados positivos. Existe uma estreita cooperação entre os principais interessados para coibir a ação fraudulenta. Apesar de terem desenvolvido diversos projetos eficientes de cooperação e de prevenção contra a fraude, ainda assim, é extremamente elevado o número de fraudes. No ramo de seguros de Incêndio na Europa, estima-se que 25% a 40% dos custos do seguro têm motivação voluntária. Isso representa somas gigantescas para as seguradoras. São números alarmantes. Uma das principais causas deste tipo de sinistro é um incêndio deliberadamente provocado. O seguro-Incêndio, em face de suas particularidades, é um dos mais difíceis de provar. Isto posto, cuidados especiais têm sido tomados.
Mas afinal de contas, qual o impacto das fraudes nos preços do seguro no Brasil? Lamentavelmente, teremos de esperar algum tempo para responder a essa pergunta. O que existe hoje são especulações. Alguns acreditam que esteja em torno de 20%, outros defendem 40%. A verdade é que nós ainda não temos condições de quantificá-lo. Em setembro de 2010, a Accenture, renomada empresa de consultoria divulgou o estudo "Improve Customer Service and Fraud Detection to Deliver High Performance Trrough Claims - Insurance Consumer Fraud Survey 2010". Segundo o estudo, citando a referência "National Insurance Crime Bureau, Insurance Fraud:Undestanding the Basics, 2010 - a estimativa atual é de que 10% dos seguros nos Estados Unidos em ramos elementares são fraudulentos, com uma taxa de detecção de fraudes de apenas 20%. Atualmente a preocupação neste assunto é crescente, já que é consenso que em momentos de crise como é o caso da economia americana, a crise por si só é um estímulo maior para as fraudes ocorrerem. Para ter acesso na íntegra ao relatório da Accenture acesse o link:  https://www.accenture.com/NR/rdonlyres/2353FCD7-DCB0-4AB5-ABC6-452C3919902C/0/Accenture_Insurance_Consumer_Fraud_Survey_PoV.pdf 
Diante do que foi exposto, entendo que para obtermos dados mais precisos no Brasil teremos de aguardar algum tempo, pois medidas mais eficazes no âmbito institucional terão ainda de ser desenvolvidas. Trata-se de um desafio do mercado segurador. A praga ainda continuará contaminando os preços de seguro, por algum tempo, trazendo perdas para a sociedade, impedindo o acesso da população à proteção do seguro e prejudicando o desenvolvimento do mercado segurador no Brasil e no mundo. 

Marco Pontes é diretor da LG&P Advisory Services e membro da Academia Nacional de Seguros e Previdência – ANSP.

Nenhum comentário:

Postar um comentário