segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Anatomia da crise do Banco PanAmericano Parte II - Os auditores falharam?

                Sempre que ocorre uma fraude ou a quebra de uma instituição, discute-se a eficiência dos trabalhos dos auditores. O caso do Banco PanAmericano não é uma exceção. É uma tendência do ser humano buscar culpados. O julgamento é inevitável. Melhor seria entender o que aconteceu e porque aconteceu, antes de partir à caça dos culpados.
Até o momento, e com base no que tenho acompanhado pela mídia, posso fazer duas afirmações com convicção, e deixar outro questionamento no ar, que espero ser devidamente esclarecido.
Inicialmente, vamos ao questionamento: por que o Banco Central não percebeu a trama antes? Devo lembrar que o BACEN possui todas as condições de acesso e controle do mercado. Certamente tinha acesso à base de dados do PanAmericano e à base de dados dos bancos que adquiriram as carteiras do PanAmericano. Esse tema deve ser esclarecido ao longo do processo e a imprensa deve fazer seu papel para informar a sociedade.
                Quanto aos culpados. Não resta dúvida que até o momento os administradores são os responsáveis pelo que ocorreu. O desenrolar dos acontecimentos apenas comprovará o fato. A pior face de uma administração familiar ficou evidente neste caso. O que justifica colocar um professor de Educação Física no mais alto posto da Administração de uma instituição financeira? Alongar os Ativos de uma companhia por meio da fraude é a mesma coisa que fazer músculos usando anabolizantes. Não podia dar certo. Espera-se que a Justiça apure e puna os responsáveis pelos prejuízos que causaram.
Em vista da Liderança Capitalização fazer parte do grupo, o problema detectado no PanAmericano pode servir de  alerta para SUSEP avaliar a situação da empresa, especialmente se algum membro da administração do Banco PanAmericano também compor a administração da Liderança.
                Quanto às duas empresas de auditoria posso afirmar que dificilmente teriam condições de identificar a fraude. Trata-se de duas das maiores empresas de auditoria no mundo. Não estamos falando de duas empresas de fundo de quintal. Primeiro vamos entender a participação da KPMG no processo.
É preciso dizer que a participação da KPMG foi restrita ao processo de due diligence realizado no ano passado, quando foi contratada pela Caixa para realizar o trabalho que culminou com a aquisição do controle de 49% do PanAmericano.
O que é um due diligence? O due diligence compreende a análise e avaliação dos documentos pertinentes a uma determinada empresa, sob a perspectiva contábil e jurídica, com a finalidade de: (i) identificar riscos e passivos legais originados de processos judiciais e administrativos; (ii) apontar pontos críticos e relevantes dentro da empresa objeto da análise; (iii) determinar a melhor forma e estratégia de estruturação da transação e (iv) identificar as providências necessárias para a eliminação ou redução dos riscos identificados.
A intenção do due diligence é obter a radiografia de uma empresa por meio da análise de documentos disponibilizados pela empresa target e por entrevistas com os membros indicados por ela, de forma a prepará-la para uma operação de fusão ou aquisição.
Por mais cautela que a empresa contratada para realizar o trabalho tenha, existem grandes limitações para realizá-lo, plenamente.
Normalmente, as empresas que realizam este trabalho, exigem uma farta documentação para concluir sobre a situação da empresa target. Contudo, na maioria das ocasiões se deparam com grandes limitações. A começar pela documentação disponibilizada. Na grande maioria das ocasiões os documentos ficam em um local para serem analisados, com limitação de acesso. Os executores do trabalho analisam a documentação fornecida. As entrevistas com os responsáveis da empresa às vezes não são permitidas. Alternativamente torna-se necessário apresentar os questionamentos por meio de perguntas por escrito, e que muitas vezes não são respondidas. Tanto os documentos quanto as entrevistas são levados em conta para a conclusão dos trabalhos.
Em vista da limitação de tempo que possuem, apresentam um check list que enumera as informações e documentos necessários para a realização do trabalho. O check list é ajustado de acordo com a finalidade do trabalho e dos documentos disponibilizados.
Feita a análise dos documentos, as equipes de due diligence avaliam os dados relatados para identificar os pontos críticos existentes em relação à empresa target, ou que possam impactar a operação, gerando um relatório para apresentação ao cliente. O referido relatório é direcionado de acordo com a finalidade do due diligence, podendo destacar os aspectos societários, tributários, trabalhistas, contratuais, de direitos, regulatórios e concernentes ao contencioso do target. Eventualmente muitos aspectos podem ficar de fora.
Minha experiência demonstra que além de um rito burocrático extenso para obter material complementar em muitas ocasiões, a empresa target não disponibiliza profissionais para responder às perguntas dos profissionais da empresa contratada para a realização do due diligence, conforme destaquei acima.
Naturalmente, em um ambiente tão limitado, a empresa contratada para realizar o trabalho toma uma série de precauções para ter segurança na sua conclusão. Por essa razão o resultado do trabalho de quem realiza o processo de due diligence não é um relatório de auditoria na acepção da palavra, mas uma espécie de Agreed Upon Procedure, isto é uma relatório de procedimentos pré acordados entre as partes, cujo acesso é permitido apenas para quem contrata o projeto, no caso, a Caixa.
Diante disso posso afirmar que a KPMG, provavelmente, não dispunha das mínimas condições, pela exposição acima, de detectar a fraude, como certamente ficará comprovado ao longo do processo junto ao Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários (Brasil SEC).
E quanto a Deloitte? Na qualidade de auditor externo é possível que tivesse condições de encontrar indícios da fraude, pois, apesar de não ser responsável pela fraude cometida pelos administradores, deve levar em conta a potencialidade de ocorrer fraude nas análises que realiza. Conta, ao seu favor, o fato de que não dispunha de acesso ao banco de dados dos bancos com quem o PanAmericano negociou a carteira de crédito. Se tivesse acesso, certamente passaria a ter responsabilidade. Duvido que tenha tido.
A Norma Brasileira de Contabilidade – Interpretação Técnica NBC-IT 11, disciplina os procedimentos que devem ser realizados quanto à Fraudes e Erros. Sob esta perspectiva deverá ser avaliado o trabalho da Deloitte junto ao BACEN e a CVM.
É importante salientar que a atividade da empresa de auditoria é meio, e não fim. Para ficar mais claro o sentido do que pretendo dizer, recorro ao exercício da profissão de médico, como exemplo. Ele, o médico, não pode ser responsabilizado pela morte de um paciente se tratou o paciente de forma diligente. Se ele fez de tudo para tentar salvar o paciente, solicitando os exames pertinentes para detecção do diagnóstico, prescrevendo a medicação correta, ele não pode ser responsabilizado se o paciente não correspondeu ao tratamento e faleceu.
O mesmo ocorre com o auditor. O que deve nortear a análise e a conclusão do caso PanAmericano é: o auditor foi diligente no trabalho que realizou? Só a investigação concluirá sobre o nível de responsabilidade da empresa que realizou a auditoria. Mas isso, só o tempo vai dizer.
Para concluir, eu gostaria de salientar que é muito difícil pegar uma fraude desta natureza, especialmente quando a administração está diretamente envolvida, como foi o caso. As empresas de auditoria sabiamente se protegem de tais situações, incluindo em seus contratos salvaguardas quanto à possibilidade de que certos procedimentos irregulares praticados pela administração possam impedir a detecção de erros, irregularidades e atos ilegais significativos. Esta cláusula costuma constar da proposta e do relatório final de auditoria.
Muitos administradores questionam a inclusão desta cláusula e fazem de tudo para excluí-la. Eu, por força do ofício de consultor no passado e na qualidade de colaborador de duas empresas de auditoria de grande porte, fui questionado com frequência por alguns gestores de empresas que faziam de tudo para a remoção da cláusula.
Nestas ocasiões eu recorria aos meus superiores para relatar o caso. Eles ouviam pacientemente minha argumentação, mas não arredavam pé de suas convicções. Eventualmente, para se verem livre da minha insistência e, desde que tivessem tempo e, em respeito ao tempo que lhes tomava, ofereciam sugestões para alterar o texto sem, entretanto, alterar a finalidade da cláusula. Compreensível, afinal cabe a eles, a responsabilidade técnica da firma para evitar riscos para a organização.
A cláusula é deselegante. Pode até ser, mas no mundo empresarial, especialmente nesta atividade, não existe espaço para ingenuidade. Se um gestor questiona esta cláusula é bom ficar de olho; afinal contra dolo e conluio, especialmente aqueles praticados pela Alta Administração, a probabilidade de identificar uma fraude é praticamente nula.

Marco Pontes é diretor da LG&P Consulting, membro do Instituto Brasileiro de Atuária (IBA) e da Academia Nacional de Seguros e Previdência (ANSP).
Twitter: @MarcodePontes
Skype: Marco.Antonio.Pontes

3 comentários:

  1. Marcos,
    como ex-auditor da KPMG posso dizer que é muito cômodo ser auditor. As empresas pagam milhões pelo trabalho de auditoria visando um conforto com relação a posição patrimonial da empresa e quando a empresa de auditoria emite um documento autenticando a veracidade dos dados financeiros não é possível confiar no parecer. Que tipo de problema relevante uma empresa pode ter com relação à veracidade dos dados financeiros que não fraude ou erro? A sociedade espera que as empresas de auditoria a proteja desse tipo de situação. Os auditores, um exército de engravatados com excelente postura (e talvez apenas postura mesmo), vendem a idéia de que o parecer garante a fidedignidade dos dados apresentados, mas toda vez que um problema é detectado aparecem argumentos para dizer que "esse tipo de situação o auditor não é responsável por detectar".
    Pra que serve então a auditoria? Seria que a auditoria hoje não representa apenas uma obrigação legal e sem nenhuma importância prática? Não seria interessante repensar a importância dessa atividade.

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  2. Fabrício,
    Quando escrevi o artigo fiz com a intenção de fazer um contraponto ao farto material que li na imprensa sobre o papel das empresas de auditoria na sociedade. Muito do que li não fazia qualquer sentido e demonstrava total desconhecimento da atividade de auditoria. Optei por elucidar lacunas com a finalidade de contribuir para o leitor ter mais subsídios para avaliar a situação. A ignorância conduz ao julgamento precipitado. Não tive a intenção de juntar argumentos para defender esta ou aquela empresa, mas de ressaltar a importância da atividade como salvaguarda para que situações como a que ocorreu com o Banco PanAmericano não se repitam. Considerando que já trabalhou em uma empresa de auditoria seu comentário surpreendeu. Este assunto ainda não foi objeto de apuração adequada e de julgamento e de forma surpreendente você descredencia toda uma classe de profissionais utilizando uma terminologia deselegante, equivocada que não condiz com a realidade. Convenhamos não faz muito sentido generalizar. Lamento que sua experiência na KPMG não tenha contribuído muito para permitir uma visão mais acurada do papel das empresas de auditoria para sociedade e que apesar de ter tido a oportunidade de trabalhar em uma grande empresa emita uma opinião tão enviesada dos profissionais e da atividade. Eu discordo de seu ponto de vista sobre os profissionais que atuam no segmento de auditoria. Eu concordo apenas com uma afirmação que fez “a sociedade espera que as empresas de auditoria a proteja desse tipo de situação”. Neste sentido muito tem se feito com a participação dos órgãos reguladores. Posso afirmar que não é cômodo ser auditor. Não é por diversas razões. Lidar com situações complexas para administrar no cotidiano e estar ciente que os riscos são significativamente elevados e que um erro pode levar ao desaparecimento de uma empresa e os responsáveis perder o patrimônio conquistado ao longo da atividade laboral, penso que não é uma situação cômoda. Talvez as lições mais importantes que aprendi, mediante a convivência com profissionais auditores sejam: o emprego do bom senso, a necessidade de compreender os fatos e, finalmente o respeito profissional. O caso PanAmericano deverá se prolongar por mais tempo até uma decisão ser proferida. Se ficar comprovado que o auditor externo não foi diligente não tenho dúvidas que terá que arcar com o ônus. Quanto a participação de seu antigo empregador, penso que pela característica e natureza do trabalho realizado não teria como identificar a fraude.

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  3. Marco,
    Gostaria de parabenizá-lo pela qualidade dos artigos publicados no blog e dizer que de forma alguma tive o objetivo de proceder de forma deselegante. Peço desculpa por qualquer mal-entendido e garanto que a minha participação objetivou apenas promover o debate sob outro ponto de vista, ponto de vista esse que já vi ser defendido numa aula de mestrado e por outros profissionais da área.
    Gostei muito das suas colocações e concordo com você pois esse é o posicionalmente atualmente adotado pelos órgãos reguladores da profissão. Meus comentários visaram apenas apresentar uma visão menos técnica e mais condizente com as expectativas dos investidores e da população de um modo geral. Eu ainda sou auditor, só que agora no setor público, e te digo que fico muito decepcionado com a minha profissão quando vejo esse tipo de coisa acontecer e o auditor dizer que "é muito difícil pegar uma fraude". Acredito que teríamos grandes avanços na profissão se diante de uma situação como do Panamericano nossa profissão se posicionasse mais para aprender com os erros do que se defender a partir de argumentos legais e formais. Uma pergunta que talvez devesse ser feita é "Como (nós auditores) devemos proceder para detectar fraudes?".

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